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RELATORIO DOS TRABALHOS

LIDO NA SESSÃO PUBLICA

DA

ACADEMIA REAL DAS SCIENCIAS DE LISBOA

EM 12 DE DEZEMBRO DE 1875

PELO SECRETARIQ GERAL INTERINO

José Maria Latino Coelho

SENHORES:-Apparece hoje congregada em solemne festividade litteraria a Academia Real das Sciencias de Lisboa, não somente para obedecer ás praxes e ás tradições do ceremonial, senão tambem e principalmente para cumprir duas sagradas obrigações do seu instituto. Apparece perante um numeroso e publico auditorio para lhe relatar as investigações e os escriptos, em que empregou a sua actividade intellectual, e mostrar-lhe os documentos e as provas, em que elle possa estribar o seu juizo ácerca dos serviços e dos progressos da nossa corporação. Apresenta-se egualmente em publico para realisar um dos ritos fundamentaes de sua liturgia litteraria, e sagrar o preito dos seus louvores á memoria dos homens benemeritos, que durante a vida honraram ao mesmo tempo a sciencia e a Academia, e agora, já coroados com o glorioso diadema da posteridade, são estimulo e dictado aos que lhes sobrevivem na cultura do saber.

Nunca as academias, consagradas á mais alta elaboração intellectual, viveram, como no seculo presente, em tão ne

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cessaria e continua intimidade com a geral opinião. Em nenhuma das épocas mais assignaladas na historia do pensamento foi mais difficil o encargo e mais grave a responsabilidade para estes corpos scientificos e litterarios, destinados a enlaçar na sua mystica unidade a sciencia do espirito e da materia, a vasta encyclopedia da natureza e da humamanidade.

Nas edades, que precederam o XIX seculo, ainda nos proprios tempos em que a intelligencia agitou mais profundamente a consciencia e a sociedade, nunca foi tão geral e tão estreita a communhão entre o espirito dos sabios e o espirito das multidões, nunca foi mais vaga e esbatida a linba divisoria, que separa as academias, como corporações aristocraticas, e a razão universal, que pelas incessantes conquistas da educação e da imprensa tende a generalisar cada vez mais as idéas e os estudos; a tirar á sciencía o caracter de um privilegio para a converter n'um attributo essencial ao homem civilisado.

Este caracter profundamente democratico da sciencia contemporanea, esta communicação frequente e necessaria entre os seus cultores e o publico illustrado, esta relação intellectual como que de productor a consumidor no mercado espiritual das idéas e descobrimentos, apaga as fronteiras que antigamente separavam das multidões os obreiros da sciencia, e em certa maneira a constituiam em corporação cerrada e esoterica, lhe davam a feição de uma ciosa theocracia do espirito e faziam da republica das lettras uma ambiciosa oligarchia. Hoje a sciencia é de todos e para todos irmanmente. De todos é o seu proveito. A todos pertence a sua critica. Como os poderes, que presidem aos interesses politicos e economicos, estão sujeitos à jurisdicção e á sentença popular, sem que lhes possa valer a ficção da sua origem e a magestade da sua purpura, assim tambem as academias, que são apenas representantes, não dictadoras da sciencia, não alcançariam esquivar-se á alçada omnipotente do

juiso publico. Nem os governos na esphera dos principios sociaes podem viver fóra do consenso nacional, nem as academias, na região dos principios scientificos, podem ter auctoridade além da que derivam da razão universal. D'ahi procede que seja a publicidade a condição essencial para o regimen das sociedades e para a economia das idéas, a atmosphera onde respiram desafogados os governos livres e as progressivas academias. É por isso que a Academia Real das Sciencias de Lisboa se congratula de celebrar publicamente a sua sessão anniversaria. É n'este dia que ella estreita os seus vinculos com a intelligencia nacional, é diante do publico, chamado para auctorisar a sua festividade e interpor o seu juiso, que a Academia avigora a firme persuasão de que é para gloria e proveito nacional, que o paiz lhe conferiu a sua honrosa investidura.

No meio do immenso movimento scientifico da edade nossa contemporanea, apesar de que a sciencia, na sua duplice condição de conhecimento do homem e do universo, multiplica sem cessar os seus problemas e com a sua curiosidade nunca plenamente satisfeita, averba de insufficientes e escassas as mais poderosas energias intellectuaes, não podia esquecer á Academia que entre os primeiros e mais uteis encargos da sua fundação se numera o de zelar a pureza da formosa lingua patria, d'este idioma opulento e varonil em que, se nem sempre tomaram fórma as mais altas e originaes concepções do espirito humano, se moldaram todavia as idéas de poetas e prosadores, os quaes transcenderam com o seu nome e a sua gloria os ambitos estreitos da litteratura nacional para serem escriptores cosmopolitas.

Não pode a linguagem de nenhum povo immobilisar-se e como que fundir-se em bronze para desafiar nos seus contornos immutaveis a acção do tempo e das idéas. Toda a lingua viva, por isso mesmo que tem acção e movimento, é um organismo, em que se estão passando perennemente profundas transformações. Não somente se permutam, por uma

continua assimilação, os antigos elementos, senão que por uma lei universal da natureza, a da variação inevitavel dos typos e das fórmas organicas, vão perdendo pouco a pouco as feições primordiaes e accommodando a sua indole ao meio em que respiram. Já passou o tempo, em que o fanatismo. litterario e o purismo exaggerado até à superstição lastimava como vergonhosa decadencia, o não se conservarem como religiosa e immaculada tradição os primores do classico dizer, e em que se forçava o seculo presente a trasladar o seu sentir e o seu pensar naquella mesma lingua, em que se tinham memorado os feitos das nossas glorias e conquistas, ou se haviam modulado os cantos nacionaes. Quando na litteratura, sem renegar inteiramente a auctoridade dos modelos, se concedeu tambem logar aos fóros do moderno pensamento, quando se advertiu que acima de uma linguagem, reputada inexcedivel na melodia, na propriedade e na expressão, está a lei inquebrantavel do progresso humano, e que após as edades aureas, que a historia registou nos mais nobres e perfeitos monumentos litterarios, estão justamente, como grandiosa compensação à inferioridade esthetica dos nossos tempos, os mais sublimes descobrimentos da sciencia e da razão, a amoravel idolatria pela vernaculidade seiscentista cede o passo às peremptorias intimações de uma nova e diversa civilisação. A cada idéa corresponde um novo molde, a cada variação no pensamento uma forçosa alteração no idioma nacional. Enleva-se o cultor enthusiasta da bella antiguidade ao contemplar as reliquias da arte grega, e sob o conceito esthetico prefere o genio que ideou o Parthenon ao talento que perfura o Monte Cenis. Ainda hoje nos delicía o dizer terso e inimitavel d'aquelle elegantissimo escriptor, que soube dar encanto e colorido ás lendas piedosas e monasticas. E comtudo seria hoje inexequivel acudir ás exigencias da nossa civilisação, mantendo intemerata a arte hellenica. E seria não sómente absurdo, mas risivel que no meio dos nossos parlamentos tractasse

mos as questões da vida practica nos periodos sonoros de Fr. Luis de Sousa ou de Bernardes.

Conciliar quanto é possivel a pureza da linguagem com as innovações necessitadas pela indole do moderno pensamento, e dirigir discretamente a lenta e racional transformação do idioma, sem que se bastardeie e degenere por insensatos e desnecessarios neologismos no vocabulario e sobretudo na fórma de dizer, eis-ahi o problema que é forçoso resolver em cada época, de maneira que a falla nacional, sem perder a elasticidade, conserve todavia as suas feições e caracteres individuaes. Á Academia Real das Sciencias de Lisboa competem n'este ponto particulares obrigações. Desde os primeiros tempos da sua fundação buscou ella realisar um intento, que assignalára já nos fastos litterarios a algumas das mais celebradas instituições que lhe serviram de exemplares e de modelos. Procurou enriquecer a litteratura portugueza com um grande diccionario, de que se estampou unicamente o primeiro volume, redigido em amplissimas proporções. Frustrou-se a empresa infelizmente, e largos annos decorreram sem que fosse possivel atar o fio interrompido a tão util e trabalhosa composição.

O nosso consocio de merito, o sr. Alexandre Herculano possuia o manuscripto de um diccionario portuguez, que o sr. conselheiro Ramalho alcançara compilar como fructo de suas pacientes e dilatadas leituras e investigações. Resolveu a Segunda Classe da Academia adquirir aquelle escripto, fiando que melhorada a redacção, se poderia dar á estampa. Era certamente para lastimar que d'entre todas as nações cultas, apenas Portugal não tivesse um lexicon auctorisado, onde como em vasto repositorio estivessem archivadas todas as riquezas da linguagem, não sómente no que respeita ao vocabulario, senão tambem no referente aos modismos e locuções, de que é tão copiosa a elegante falla de Vieira e de Lucena. Tres obras ha, que são indispensaveis a um povo civilisado, e dão por assim dizer a medida e o padrão,

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