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MEMORIA

PRESENTADA POR EL

EXCMO. É ILMO. SR. D. LUIS JARDIM

CONDE DE VALENÇAS

Académico correspondiente en Portugal.

Senhores:

Esta Real Academia de Jurisprudencia, para celebração condigna do quarto centenario do descobrimento da America, resolveu discutir, em congresso juridico, alguns dos problemas de Direito internacional, cujo exame, c porventura a solução, podem ser de interesse immediato ás nações ibero-ameri

canas.

As questões, que sabiamente escolheu, e ora submette ao congresso, revelam a simples leitura quaes os intuitos generosos e alevantados d'esta Real Academia; e de como é verdadeira e séria a sua alta comprehensão dos deveres do jurisconsulto n'este momento unico da historia,-unico e de enthusiasmo para tantos povos, e maximé para os da raça latina.

Falar n'esta occasião em nome do direito e da justiça; erguer no meio de uma festa humana, e que desdobra em generosidade o coração,os animos, as idéas, a sciencia, a intelligencia, a palavra e o estudo, para o direitounico senhor do mundo-é grande; e esta Academia realisou um til pensamento. Eu a felicito. E sinto-me honrado, engrandecido, em ajuntar a minha vontade á sua, para que se estreitem as relações de nacionalidades, que teem a mesma origem na raça, o mesmo direito nos codigos, a mesma religião na consciencia, a mesma politica nas instituições, o mesmo ideal na vida.

Senhores: O momento é solemne; e eu vej-ome ennobrecido ao encontrar-me entre os homens da lei e do direito, entre illustres jurisconsultos, para sua celebração.

O primeiro problema, para que pediu a referta, vem redigido do seguinte modo:

Bases, conveniencia e alcance da arbitragem internacional para resolver as questões que surjam ou estejam pendentes entre Hespanha, Portugal e os Estados ibero-americanos. Fórma de tornar efficaz esta arbitragem.

Esta é a primeira questão; e paremos aqui, porque d'ella vamos falar:

I

A arbitragem na consciencia humana.

Senhores: No fundo da consciencia existe a idéa vaga da arbitragem. Quando qualquer acção injusta nos pesa, ou d'ella somos victimas, logo o nosso ser intimo recorre a um poder superior, invisivel e dizemos:-elle jul. gará; será o arbitro, e um dia castigará a injustiça. O ser humano fica então mais tranquillo. Anteviu a lei de harmonia que rege o mundo, e o equilibra no dominio phisico e no dominio moral. Mas, porque o mundo nem sempre respeita as leis moraes, necessita elle das leis positivas. O ser humano bem cedo traduz a idéa vaga da sua consciencia nas instituições reaes e vivas:— os arbitros, os juizes, os tribunaes. A propria guerra não é senão o ultimo termo d'essa idéa; é uma grande arbitragem, a que a Biblia e a consciencia popular chamam-o Deus dos exercitos. Quanto mais se avança, menos necessario é o recorrer a esse tribunal supremo, porque o Deus dos exercitos tem descido da sarça ardente para as leis, para os codigos, para as relações sociaes. Deus feito homem é o symbolo da civilisação, em que a razão, a justiça, e até os commodos da vida cada vez mais se affirmam. Prendemos o raio, como Franklin, fizemol-o prisioneiro, marchamos com elle. E só no caso ultimo recorremos ainda ao seu tribunal-é elle que decida. Então não o chamamos para questões materiaes, tanto elle, pelo seu afastamento, é sublime; mas para as questões de dignidade nacional-idéa moral, grande, immensa, que está acima dos codigos, das leis, e da propria consciencia. É como o duello na vida civil e nas questões de honra.

II

A arbitragem na consciencia dos povos.

E esta idéa de justiça innata ao ser humano é a que elle realisa tantas vezes no concerto dos homens em sociedade. Quem desce á contra veia o rio dos seculos, a respirar o ar forte da manhã das modernas civilisações, logo ahi na sua origem, quando os povos se fixam nos lares, depois de choques temerosos, só eguaes ás guerras modernas, ahi encontra com a fixidez das raças, o tribunal da arbitragem. Na Gallia antiga as mulheres eram chamadas como arbitros entre as nações,-dil-o o popular historiador da França, Henri Martin. E nas sociedades novas, quando no seculo XII tudo é communa; e se formam as communas da intelligencia—as universidades; as communas da religião-os conventos; as communas das artes e officios-as mestrias e jurandas; as communas politicas- os concelhos, que são republicas na Italia, communas propriamente ditas na França (povos da lingua romance:--d'oc e d'oil), municipios na Hespanha e em Por

tugal, com seus foraes e foros,- então, que a individualidade humana, combatendo pela vida, se affirma na sua maior força-a associação, — é que o direito pela vez primeira apparece para dirimir as questões dos povos. Surge na dieta de Roncaglia para resolver os conflictos das cida des da Lombardia com o lendario Frederico Barba-Roxa. Ahi comparece ram os delegados das republicas, os jurisconsultos de Bolonha, e o proprio imperador, a quem o insigne Sismondi de Sismondi chama o terrivel Xerxes da edade-média. Os jurisconsultos deram sentença a favor do imperio. A ley romana era em voga, e affirmava os direitos magestaticos. N'este seculo, a arbitragem dos cavalleiros da toga é por vezes invocada, e elles decidem entre as republicas da Italia, entre os seus diversos principados e os da Allemanha, entre a casa Farnèse e Portugal, entre o duque de Milão e o de Saboia, entre Frederico II e o papa Innocencio IV (1224). Os doutores das universidades de Paris, Pérouse, Bolonha e Padua são escolhidos juizes compromissarios; e tal exemplo é seguido em outros paizes. Todos queriam o imperio da ley; e quem a conhecia então eram os jurisconsultos. Encontram-se nos conselhos da realeza, nas grandes embaixadas, assignando tratados, nas côrtes geraes, e arbitros entre povos e reis. A egreja, porém de organisação semelhante á do imperio, logo que se constituiu com direito proprio direito canonico- ergueu-se acatada e respeitada entre os povos. Alem do quê, á unidade do mundo antigo, de que Cesar era o chefe supremo, correspondia a unidade da egreja, de que o pontifice era o cabeca respeitado. Havia influido, no seculo XI, nas côrtes dos imperadores do Oriente e dos reis francos pelos seus legados-legados pontificios; havia influido nas sociedades feudaes da Europa pelas treguas de Deus; fôra, pelos seus bispos, defensora dos povos, a quando ás invasões; sobrelevava agora acima de todos pela sua hierarchia e direito, compilado em codigo:-d'ahi a sua influencia, o seu prestigio, o seu poder. Interveio nas questões internacionaes, e algumas vezes guardou os principios do direito e os interesses da humanidade. Em 1298, o papa Bonifacio VIII foi eleito arbitro entre Filippe, o Bello, e Eduardo I da Inglaterra; em 1319, João XII foi o arbitro entre Filippe, o Longo, e os flamengos; no seculo seguinte o brilhante Leão X, da casa dos Medicis, decidiu a contenda do doge de Veneza com o imperador Maximiliano I. E o caso mais memoravel de arbitragem pontificia é a bulla de 4 de maio de 1493 do papa Alexandre VI que, estabelecendo uma linha desde o polo arctico ao polo antarctico, concede, a 100 leguas d'esse limite e para oeste dos Açores e de Cabo Verde, aos reis de Castella e Aragão, todas as terras e ilhas descobertas e por descobrir. Esta bulla, explicada, confirmada por duas outras subse quentes, deu origem a interminaveis questões de limites entre Portugal e a Hespanha; e, apesar dos differentes convenios e accordos das duas nações, dos quaes o primeiro é o de Tordesillas de 7 de junho de 1494, só terminaram no seculo XVIII, pelo tratado de Santo Ildefonso de 1 de outubro de 1777, que afinal marcou as extremas respectivas das possessões dos dois povos, no continente americano.

Senhores: Com esta decisão do papa, verdadeiramente eloquente, porque synthetisa e traduz o estado dos espiritos na edade-média, em que a cathedra de Pedro se eleva, sobrenada e domina, escudada nas crênças, illustração da egreja, e tradições do mundo antigo, que sempre aspirou á unidade,— finda a época da elaboração e constituição das sociedades novas, base e cimento das nações modernas. Então a arbitragem foi muitas vezes invocada;

e bem comprehende tão illustre assembléa a razão por quê. A edade média foi a grande batalha na conquista da liberdade civil; isto é, o direito que pertence ao homem de dispôr de si, dos seus bens, da sua propriedade. Para tanto luctaram as communas; e as cartas de foraes ou fóros mais não alcan çam que a determinação dos direitos adquiridos. Ahi se fixam e legislam; e logo as penas contra os infractores. As proprias guerras seja qual fôr o seu nome, são guerras da propriedade, e por causa de limites de reinos ou principados. Trata-se de defender a terra e o trabalho humano, que lhe dá valor. Então á arbitragem mais vezes havia de acontecer, porque, ao invocar a lei, determinava os direitos. A liberdade civil,-tal é o scopo, o desejo, o emprehendimento das revuloções dos seculos XII e XIII, e a razão do predomi nio dos jurisconsultos, e o do papa, que tem á sua disposição o direito canonico.

Vem o seculo XVI, porém, abrir nova era: já não é a liberdade civil que os povos desejam; é a liberdade religiosa. E esta não póde ser submettida a um tribunal, porque ninguem. póde ser juiz do pensamento humano. Ninguem. E é tyrannia o descer aos dominios da consciencia para lá surpre hender o amor de Deus. Por isso vereis, senhores, que n'este seculo XVI todos os conflictos entre os povos se deram pela religião, e não podem ser dirimidos por um tribunal. O deus dos exercitos tem de intervir, para dizer qual a religião que mais lhe praz. D'ahi as grandes batalhas de Carlos V contra protestantes; as guerras da America; a guerra dos Paizes-Baixos; as guerras da Allemanha, da Allemanha, da Inglaterra e da França, que levavam S. Thereza de Jesus a dizer,-«que ardia o mundo.» (1) A todas essas guerras era causa a religião. E feriram-se temiveis, porque eram logi. cas. Personifiquemos as duas sociedades então combatentes em dois homens-Filippe II e Guilherme de Orange. Não declamam; ambos são taci turnos. Filippe II herdara de seu pae um grande imperio, era catholico-apostolico-romano, e tão convencido, que até possuia na sua universidade de Valladolid um seminario de theologia só para os inglezes, pois elle desejava mandál os á Grã-Bretanha como missionarios para reducir á religião catholica os insulares! Quem nol-o diz é o seu creado particular, um flamengo, Jehan Lhermite, cujas memorias acabam de ser publicadas por uma sociedade scientifica de Anvers. (2) Aquelle monarcha, chefe politico de uma grande e poderosa nação, e além d'isso catholica, não podia permittir a revolta dos Paizes Baixos, que eram então provincias da Hespanha. Um chefe politico, rei ou presidente de republica, que hoje procedesse contrariamente ao rei Filippe II, seria um mau chefe, e a opinião publica do seu paiz não o defenderia. Assim Filippe II era consequente comsigo proprio e com a sua nação. Guilherme de Orange, que representava os Paizes-Baixos,--era tambem um cabeçudo; educado nas côrtes, pois fôra pagem de Carlos V, seu embai xador, e um dos governadores de Filippe II, apprendera nas intrigas e enre. dos dos paços a ser conductor de homens. Um dia surprehendeu o segredo dos reis catholicos, conversando com Henrique II de França. O segredo era este: a Hespanha nunca transigirá com a religião ou com a independencia das provincias flamengas, e fará a guerra até ao exterminio. É assim que o

(1)

Está ardendo o mundo todo›, exclamaba a santa, angustiada.- Caminho da Perfeição. (2) Le passetemps de Jehan Lhermite, publiée le manuscrit original par Ch. Ruelens, conservateur à la Bibliotèque royale de Belgique, t. I, p. 157.

conta o cardeal Bentivoglio, historiador das guerras de Flandres. Nesse momento nasceu o Taciturno; calou se; mas batalhou, intransigente, e auxiliado pelo seu pamphletario, o primeiro da Europa, Marnix de SainteAldegonde.

São estas as principaes luctas do seculo XVI. Emquanto a Italia faz uma revolução na arte, tambem religiosa, porque ao Christo macerado substitue as madonas maternaes do Raphael, e o David e o Moysés de Miguel Angelo, a Europa central conquista a liberdade de consciencia. Tribunaes arbitros não podiam exercer sua jurisdicção; as questões de consciencia não teem julga. dor; e assim o reconheceram já as constituições modernas, proclamando a liberdade de cultos. Mas, coisa notavel, para em tudo ser grande esta época da reforma, este seculo XVI,- é então que apparecem as primeiras publicações de direito internacional, e discorrendo no ensino de principios taes, que ainda agora podem ser recommendados aos alumnos das universidades e aos governadores das nações. Entre esses tratadistas do direito das gentes, primam os escriptores hespanhoes:-o jesuita Francisco Suares (1548 1617), que, no seu livro De legibus ac Deo legislatore, demonstra ser o direito natural superior ás convenções dos estados, as quaes d'elle se devem approxi mar o mais possivel, logo a existencia de um direito constituido consuetudinario, o qual deveria regular as relações internacionaes dos differentes povos christãos da Europa e da America. Vem depois o professor da uni. versidade de Salamanca, Francisco Victoria, que em 1557 publica o seu livro-Theologicae relationes. Escripto com admiravel bom senso, aconselha os principios de tolerancia, até em favor dos indios, contra os quaes não é de justiça a violencia, quando não acceitem a religião christă. Discute a paz e a guerra, e volta sempre á sua primeira affirmativa: - a dessemelhança de crênças não é um justo motivo de luta á mão armada entre dois paizes. --No encalço d'este vão Domingos Soto, theologo hespanhol (1494-1560), que, no seu libro De justitia et de jure, condemna energico a escravatura e a perseguição religiosa contra os indios; Balthazar de Ayala, que, no seu livro De jure belli et officiis bellicis (1581), persevera no mesmo juizo; e o asturiano João de Hevia Bolaños, que, na Curia philippica, livro concluido no Peru em 1615, trata differentes questões de direito commercial e maritimo. Ao par d'estes escriptores hespanhoes de superior talento, outros no seculo XVI discutiram e elucidaram as questões de direito internacional. Deverei eu citar, senhores, o belga Peckins, que em 1556 publicou o seu tratado Ad rem nauticam; o italiano Alberico Gentilis, que em 1589 escreveu o seu livro De legationibus; e o francez João Bodin, que em 1577 deu á estampa o seu tratado politico De la republique; e tantos, que neste barulhar das guerras do seculo XVI, erguem sua voz em prol da humanidade e do direito? Não o faremos. A illustração d'este congresso dispensa citações, que muito bem conhece: as que trouxemos a lume, mais não foi senão em proposito ao nosso intento.

Se o principio da arbitragem não podia ser invocado neste seculo, nem passar para o dominio das leis positivas, o pensamento humano, porem, não deixava de affirmar o direito, que é a vida dos povos. E foi a doutrina de tantos escriptores, as satyras, sirventes e pamphletos dos opprimidos em nome da religião, a tenaz resistencia dos Paizes-Baixos durante oitenta annos, resistencia contra a qual não puderam, genio, experiencia e valentia dos mais ardidos capitães do tempo, entre os quaes se ergue, avulta c do

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