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mina o duque d'Alba, que ás Flandres levou gentille et gaillarde armée» no dizer de Brantome; foi tudo isto, luta de povos e de idéas, o que, constituindo forte e apaixonada opinião publica na Europa, levou os poderes constituidos a celebrarem os congressos de Munster e Osnabruck, que, proclamando á legitimidade da reforma, consagraram em direito a completa egualdade eutre catholicos, lutheranos e calvinistas. A paz de Westphalia (1648), pondo trava ás guerras religiosas, creou a liberdade de consciencia. D'est'-arte ia completando o ser humano a sua personalidade juridica. Os estados, porém, sahiram da enorme elaboração do seculo XVI constituidos em monarchias absolutas. Fôra-lhes causa o renascimento das lettras gregas e romanas, que restituiram aos olhos maravilhados das sociedades novas, a grandeza das leis e civilisação antigas, onde a força sobreleva ao direito. E, como é proprio dos organismos vivos e robustos o affirmarem-se crescendo, essas monarchias foram conquistadoras. Assim é do seculo XVI ao seculo XIX, periodo de tempo, em que só a guerra é o supremo arbitro das nações. A paz só advém temporaria, e graças aos tratados (1) que se repetem e renovam até á paz de Utrecht (2).

Mas, dois acontecimentos ha nesse periodo, que merecem registo; pois são elles, combinados, os que nos levam á civilisação do seculo XIX, e á demonstração de sua ultima consequencia:-a arbitragem entre os povos, substituindo a guerra. É o primeiro a revolução ingleza de 1688, que, implantando definitivamente o governo constitucional na Inglaterra, creou a pleiade notavel de escriptores, cujas idéas os homens da encyclopedia vulgarisaram em França. É o segundo a influencia manifesta, persistente, constante, dos maiores pensadores, no sentido de se constituir um tribunal de arbitros, para dirimir as questões dos povos.

A contar do seculo XVII, começam de sahir a publico os projectos de paz perpetua. Ao Plano de Henrique IV, Émery de la Croix substitue (1622– Nouveau Cinée) um congresso permanente de soberanos, ou de seus delegados, para decidirem os coflictos internacionacs; pede a força para sancção de suas decisões. Hugo Grotius (1625) pensa de egual modo (De jure belli ac pacis, L. II C. XXIII). Os publicistas do direito das gentes do seculo XVIII commungam nas idéas de Grotius; quando não defendem um tribunal de arbitros para dirimir as contendas internacionaes, chegam a tal conclusão pelos principios que estabelecem. Se entre os do seculo XVII destacam Samuel Pufendorff, (3) e Spinoza, pensador illustre, nado em Amsterdam, mas de origem portugueza (1632-1677); no seculo XVIII avultam, pela estatura gigante do seu talento, os maiores e mais respeitados publicistas da Europa: -é Bentham, com o seu Plano para a paz perpetua (1786-1789); (4) é Kant no seu Ensaio philosophico ácerca da pas perpetua (1795); é Shelling, que pede a federação de todos os Estados; e finalmente, por não citar senão os pensadores mais illustres, são os philosophos Leibnitz, Volney, Condorcet; os

(1) Aix-la-Chapelle de 1668; Nimégue 1678; Rys wick 1697.

(2) Tratados de Utrecht, de Rastadt, de Bâle (França, Hespanha, Inglaterra, Portugal, Paizes-Baixos e Saboia-19 de abril de 1713, 6 de março e 7 de setembro de 1714). Regulam o estado da Europa occidental; assim como os tratados de Passarowitz, 1718,-de Stockolmo, 1720, e de Nystadt, 1721, regulam o estado da Europa a leste e ao norte.

(3) A paz, diz Pufendorff, é o que differença o homem da fera.>

(4) A plan for universel and perpetual peace, que é a ultima parte da sua monographia.-Principles of nationale law, publicada em 1843.

economistas Turgot, Smith; os poetas Lessing, Herder; e tantos outros, que dão á causa humana os sonhos do seu imaginar, os do seu coração:-é o abbade de Saint-Pierre, um visionario; é Rousseau, um sentimentalista. Todos protestam contra a guerra, contra os conquistadores; e, preconisando a fra. ternidade dos povos, a solidariedade dos seus interesses, as leis economicas que os regem, propõem uma federação dos Estados, que, suprêmo arbitro, faria cumprir suas decisões a qualquer d'elles, quando rebelde, mesmo com a perda da sua independencia. Assim, ao traduzirem os mais ardentes desejos da consciencia humana, chegam aos mesmos resultados que os escriptores e vulgarisadores politicos do seculo XVIII. Se estes querem um governo sahido da representação nacional; aquelles, propondo a federeção dos povos, imitam as fórmas do estado representativo.

Senhores: Este affirmar constante do mesmo desejo, atravez da vida dos homens reunidos em sociedades a traducção d'elle pela eloquencia erudita de tantos homens de bem, que eram ao mesmo tempo pensadores eminentes, toda esta corrente de idéas já passou do dominio especulativo para o dominio da acção. Dos livros dos escriptores e philosophos protrahiu-se ás associações scientificas, ás associações propriamente de paz, aos institutos, ás facultades de direito, ás associações de operarios; d'ahi appareceu nas discussões e no voto dos parlamentos, e logo entrou no dominio do direito positivo, sendo por vezes incluido nos tratados. Ao passo que as associações de paz, celebrando congressos, onde accörriam delegados de todos os povos, e obtendo concessões valiosas no direito das gentes, em favor da humanidade (1), pediam constantes o juizo de arbitros (2),-os estados recorriam a esse tribunal, em todo este seculo XIX, e muitas mais vezes do que nos sete seculos anteriores. Além do quê, começaram de inserir nos seus tratados clausulas compromissorias de appellarem, no caso de conflictos, aos bons officios de um intermediario, ou á arbitragem.

(1) Accordo de 29 de novembro a 11 de dezembro de 1868, para excluir das guerras o uso das ballas explosivas. Celebrado, por iniciativa do imperador da Russia, entre esta nação, e a Austria-Hungría, a Baviera, a Belgica, a Dinamarca, a França, a Grã-Bretanha, a Grecia, a Italia, os Paizes-Baixos, a Persia, a Prusia, a Confederação da Allemanha do Norte, a Suecia e Noruega, a Suissa, a Turquia, o Wurtemberg e Portugal (State Papers, VOL. IV, L. VIII, p. 16. — LIVRO BRANCO de 1873, p. p. 1 a 22).

Tratado de 22 de agosto de 1864.-Convenção internacional celebrada em Genebra, entre a Hespanha, Portugal, Confederação Suissa, Bade, Belgica, Dinamarca, França, Hesse, Italia, Hollanda, Prussia, e o Wurtemberg, para suavisar os males da guerra, e melhorar a sorte dos militares feridos nos campos de batalha:

-Ambulancias e hosbitaes militares: serão reconhecidos neutros, e como taes, protegidos e respeitados pelos belligerantes; quando cessa a neutralidade; do beneficio d'esta participa o respectivo pessoal; terão como distinctivo uma bandeira com cruz vermelha sobre fundo branco.Artigos 1.0, 2.o e 6.o da Convenção de Genebra de 22 de agosto de 1864, p. 64;

-Militares feridos nos campos de batalha:-serão recolhidos e tratados, qualquer que seja a nação a que pertencerem; os habitantes do paiz que lhes prestarem soccorros serão respeitados e ficarão livres; depois de curados, serão mandados para o seu paiz com certas condições, etc.— Artigos 5.o e 6.o da Convenção de Genebra.

(2) Resoluções em favor de tribunaes arbitros entre as nações, teem sido estatuidas nos differentes e successivos congressos de paz; sirvam de exemplo:-o de Bruxellas (20, 21 e 22 de setembro de 1848); o de Paris (22, 23 e 24 de agosto de 1849); o de Francfort-sur-le-Mein (22, 23 e 24 de agosto de 1850); o de Londres (22 e 23 de julho de 1851); o de Gand (18 de setembro de 1873); o de Genebra (31 de agosto de 1874); o de Haya (25 de agosto de 1875); o de Paris (26 de setembro a 1 de outubro de 1878), onde se encontraram 15 sociedades de paz: e finalmente o de Berne, celebrado em agosto do corrente anno.

Citar agora os casos, em que os povos da Europa e da America acceitaram medianeiros, ou se sujeitaram a arbitros, seria de razão para complemento do capitulo d'esta memoria:-a arbitragem na consciencia dos povos. Mas, senhores, este trabalho, offerecido a tão illustre assembléa, dispensa bem os succedimentos que o illustre tratadista Carlos Calvo já reuniu de boa critica, no seu-Direito Internacional. Assim, apenas traremos entre todos á vossa lembrança o notavel caso do Alabama, em que a Inglaterra e os Estados Unidos da America conferiram a arbitros o regularem interesses valiosos em litigio; e o caso de mediação que S. S. Leão XIII offereceu á Hespanha e á Allemanha na questão das ilhas Carolinas e Palaos. Muitos outros casos de arbitragem se teem realisado n'este seculo; e se d'elles não mencionamos por se encontrarem, como disse no insigne tratadista já citado, é-nos todavia preceito explicar a sua razão de ser.

É a seguinte: -Os esforços dos pensadores, a funda influencia da philosophia do seculo XVIII, quer no dominio politico, quer no dominio do direito das gentes, mal poderiam realisar o seu intento, sem que o ser humano tivesse alcançado a liberdade politica, isto é, o direito de escolher o seu representante o seu governo. Logo que as revoluções-a franceza de 1789, e as europeias de 1820, de 1830 e 1848,-discutindo fórmas de governo, formulando constituições, tiveram exarado nos codigos esse direito, essa liberdade, immediatamente o ser humano entrou na posse da sua personalidade juridica, isto é, foi cidadão. As grandes crises sociaes, portanto, necessarias para tal conseguimento-a do seculo XII, que deu a liberdade civil; a do seculo XVI, que deu a liberdade religiosa; a do seculo XVIII, e as d'este seculo, sequencia natural d'esta ultima, que nos deram a liberdade politica,-todas, emancipando o homem, lançaram a sua intelligencia, esforços, trabalho e vontade nos differentes campos da actividade humana; crearam a civilisação. E n'esta as guerras são impossiveis; e tão sómente para julgar questões de individuos ou de povos, podem e devem intervir os tribunaes. E é o que vamos demonstrar.

III

Conveniencia da arbitragem.

Senhores: A lucta pela existencia, condição de vida dos seres creados, foi sempre a lei necessaria, indeclinavel e proveitosa na vida dos seres humanos; e, sem esta lei jámais poderiamos comprehender a civilisação. Ella se nos depara ao apparecerem as raças humanas no globo, as quaes, para viver teem de luctar com o mamouth e o urso das cavernas. Então, contra os animaes de presa, combateram os homens feras. Era-lhes uma necessidade que devia proseguir quando as raças, reproduzindo-se,--não sendo que recorressem ao infanticidio, á anthropophagia, aos sacrificios humanos, o que não raro succede,tiveram de avançar, expoliando os fracos, os menos fortes, os mais inferiores em força e coragem. A selecção das especies d'est'arte se foi realisando. E, mesmo quando alguma fixidez existiu, porque especies menos batalhadoras se entregaram á pastoreação e cultivo da terra, é certo; ainda então a

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guerra era inevitavel, por que se dava urgencia em defender essas populações contra as tribus mais barbaras, que viviam da caça aos seres vivos, quer da especie animal, quer da especie humana. Além do quê, multiplicando-se os seres da mesma casta, a população, um momento sedentaria, tinha urgencia de avançar, conquistando o terreno, por ventura occupado por outra varie. dade da especie humana. A guerra era uma necessidade da vida, e assim o prova a concorrencia dos seres creados, que vivem á custa uns dos outros em todas as ordens da natureza. É isto uma lei observada, ainda que a sua explicação sobreleve ao entendimento humano. Nas averiguações scientificas de muitos homens illustrados ácerca das civilisações prehistoricas, tanto se encontram, já no velho ou em o novo-mundo os restos, os vestigios d'essas sociedades primitivas, que certamente tiveram um momento de existencia, mas que foram subjugadas e pereceram, como haviam perecido e desapparecido as especies animaes, o mamouth, o mastodonte e o rangifer, terriveis concorrentes do homem na lucta pela existencia. A guerra, fazendo a selecção dos fortes, consentiu, pois a continuação da vida. Mas a guerra deveria mudar de feição, acabar com o aniquilamento cabal dos vencidos, quando um dia acudisse á intelligencia humana o raciocinio,-de que mais vale reduzir á escravidão os vencidos do que sacrificál-os aos deuses ou comêl-os; e foi a escravatura, tão censurada dos pensadores christãos, certamente melhorada por elles-padres e pontifices,-quem permittiu o primeiro irrad ar da civilisação. Com a escravatura os proprietarios dos estados, reis, imperadores, grandes vassallos, leudas, emfim, companheiros d'armas,-poderam devotarse tão sómente á guerra, e assim defender as sociedades rudimentares, que mais logo se deveriam chamar-nações. Sob a pressão da concorrrencia, or ganisaram um governo natural da circumstancias, e que concentrava e orga. nisava a força; aperfeiçoaram-n'a, creando os serviços militares, melhorando os petrechos do combate, educando os homens quer na paz ou na guerra, para a defeza, para a peleja, para a resistencia, e até não raro para a conquista. Foi tal organisação guerreira de grande ventagem para a civilisação, por que guardou dos mais barbaros as sociedades primitivas, e devia protahir-se emquanto houvesse barbaros. Comtudo, organisado o governo, posta a sua defeza é de intuição que devia melhorar a sorte d'essas populações venci. das, por ventura de condição pacifica, e mais proprias para as industrias laboriosas da terra ou das artes. Assim succedeu naturalmente, porque, mantendo ellas as sociedades, era de urgencia não as sobrecarregar de tal modo, que se destruissem os elementos productores. D'ahi vem o melhoramento das classes trabalhadoras. Os proprietarios dos estados comprehenderam, que, em vez de sustentarem os escravos, visto que elles eram de condição e aptidões superiores aos animaes de carga,-elles se podiam manter a si proprios, dando tão sómente prestações e rações convenientes para a sustentação dos chefes, homens de presa, superiores na hierarchia, superiores porque eram os mais fortes; -e nasceu a servidão da gleba. Os servos formaram communas, os de artes e industrias, mestrias e jurandas, consentidas bona pace, dizem os documentos; transacções de paz, lhe chamam outros; contractos de venda tambem affirmam alguns. Certamente transacções foram, porque ahi se fixam as prestações que pagar. D'aqui virá a civilisação, e mais logo a inu. tilidade da guerra. Emquanto houve barbaros, comprehense a sociedade guerreira, bellicosa, o predo nio dos fortes. Logo que as sociedades constituidas avassallaram os barbaros na Europa, na America, na Oceania, na Asia e

na Africa, o receio da guerra devia desȧpparecer. Fôra de proveito e o unico meio de concorrencia na lucta pela vida; fôra a historia do mundo antigo; e tão necessaria, que, quando houve a paz romana, a educação militar dos fortes affrouxou nas blandicias da civilisação, e os barbaros invadiram o imperio, e fizeram no em postas. As índustrias, porém, com o melhoramento das classes inferiores, successivamente libertas da servidão, haviam robustecido e bracejado; do interior das bahitações, do burgo dos castellos, do recinto das muralhas de villas e cidades, para as feiras francas e mercados nacionaes e extrangeiros; haviam quebrado as barreiras, os alealdamentos, os systemas prohibitivos, haviam-se alargado á Europa, e mais logo ao mundo, quandoacontecimiento de maravilha o avasalla e enche de admiração:-a descoberta da America.

Então as raças arias, voando por cima das aguas todas, na phrase de Fernão Mendes Pinto, voltaram ao berço do sol, d'onde haviam partido; e, pelo mar, a noite do abysmo, como lhe chamam os orientaes, nunca d'antes navegado, como diz Camões, o gigante das tormentas vê passar as frotas carregadas da pimenta, do gengibre, da canella, da gomma copal, do cacau, do pau de campeche, e á India, ao Cabo, á Australia, ao Brazil, ás Antilhas, ás ilhas do Oceano Indico, etc, levar o commercio, que avassalla o mundo, e estreita as relações dos povos. Os barbaros eram invadidos pela civilisação; e o invento das armas de fogo, inutilisando suas grandes massas combatentes, dá a victoria á destreza, á intelligencia, á força moral. Victoria incomparavel, pois egualmente deu á sciencia novos conhecimentos sobre geographia, hydrographia, meteorologia, botanica, agricultura, historia geral. Tudo chegára, pois, á hora marcada pelo destino para a emancipação cabal das classes trabalhadoras; e, realisando este grande facto social, tudo viera transformar as condições da vida dos homens reunidos em sociedade. A lucta entre elles continuou, que é essa a lei da vida; mas, sob a pressão de uma enorme concorrencia, já não era a guerra das armas, era a guerra das industrias,-o combate incruento do trabalho. Agora, senhores, declarae a guerra, e destruireis immediatamente tão admiraveis conquistas do espirito humano,-destruireis a civilisação. Em verdade, é grande o principio observado pelas sciencias sociaes, que o homem deseja sempre conseguir a maior somma de satisfação com a maior economia de forças. Logo que o meio empregado para a obtenção de um commodo necessario á vida humana, é mais custoso que um outro, aquelle é regeitado e substituido pelo que dá menor sacrificio de forças, menor sof frimento. A guerra é e foi sempre uma perda de forças. Se se explica e defende, emquanto existiam barbaros, é que os resultados compensavam os esforços e as despezas feitas; e a educação militar era necessaria mesmo no intervallo das guerras, para se não perder, pelo desuso, o instrumento necessario á manutenção e guarda dos elementos civilisadores. Prehenchido, porém o seu fim, obtida a civilisação pelo progresso gradual das classes servas, pela obtenção, afinal da sua personalidade juridica, egual hoje para todos, a guerra não se comprehende. Não dá vantagens, nem interesses, nem proveitos, porque são de tal ordem e tão grandes as despezas feitas com a manutenção dos exercitos, com as batalhas campaes, por vezes successivas, com o cerco das cidades, por vezes demorados,-que a propria victoria, ainda que obtenha accrescentamento de territorio e uma contribuição avultada em dinheiro, não chega, não consegue saldal-as. Além do quê, hoje não combatcm exercitos, combatem povos inteiros; e a victoria póde ser, affectando

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