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pelo Guadiana. Chegado á sua foz, em Villa Real de S. Antonio, o Guadiana entra no Atlantico; e é este oceano quem banha as costas de Portugal desde Villa Real ao Cabo de S. Vicente, e as de Hespanha, desde Ayamonte até Tarifa no estreito. N'aquelles rios e n'estes mares adjacentes ás costas dos dois paizes, formando nas de Hespanha o golpho de Cadiz,-sempre existiu, consentida pelo uso e boa amizade das relações internacionaes, a reciprocidade da pesca. Todavia, ultimamente, teem sido reiterados os conflictos entre os pescadores das duas costas. A 2 de outubro de 1877 começaram as desavenças nas aguas chamadas do Monte Gordo, no Algarve; em abril de 1878 succediam no rio Minho, areinho de Vimes, entre a freguezia de Seixas e a parochia hespanhola de S. Miguel. Taes conflictos, não resultantes do antagonismo ou odio entre as populações da extrema dos dois paizes, pois que, nas artes de pesca de uns e outros, andam á mistura pescadores das duas nações, e mais portuguezes nos barcos de Hespanha, do que espanhoes nos barcos portuguezes,-vem antes da differença dos apparelhos de pesca; pois os da ilha Christina usam exercer aquella industria com gateōs e parelhas, barcos de Bon, (redes prohibidas pelos regulamentos communs da pesca), e os portuguezes com artes ou chavegas. Do modo de pescar, portanto, vinha o conflicto, que a pesca do alto e con anzoes não podia fazer damno a portuguezes, mas sim o lançamento das redes de suspensão ou de cêrco, que calam a maior distancia da costa do que as artes alli generalmente usadas pelos nacionaes. Como quer que seja, taes conflictos, atravessados das más paixões que gente rude e ignorante costuma ter em suas discordias ederamse em 1877, repetiram-se em 1878 em Villa Real, e na costa de Tavira e continuaram em outubro de 1879. Desde seu começo envidaram esforços os dois governos para lhes pôr cobro; e a reciprocidade da pesca nas aguas jurisdiccionaes, ou linha de respeito das duas nações, affirmada pela Hespanha como emanente do uso antigo e dos documentos legaes (reaes ordens de 22 de dezembro de 1861, 21 de março de 1862, 26 de junho de 1863) e contestada pelo governo portuguez, por não existir accordo, convenção, ou acto expresso e directo, que a fundasse, mas, em todo o caso, provinda da benevolente e dilatada tolerancia, que tambem faz lei,-foi suspensa temporariamente em todos os rios e mares de entre ambos os paizes. O accordo feito em Madrid a 17 de outubro de 1877 assim o determinava, até que os dois governos, melhor informados, de concerto resolvessem o regimen que devia prevalecer, e as condições em que devia ser estabelecido. Até então, cada qual só podia pescar nas suas aguas. N'aquelle mez de outubro foram nomeados commissarios para syndicarem dos factos occorridos, e concertarem entre elles o conveniente regulamento da questão das pescarias. A portaria do Ministerio da Marinha de 17 de outubro de 1877 encarregou de tal com. missão o capitão tenente da armada portugueza, José Allemão de Mendonça Cisneiros e Faria; o governo de Hespanha nomeou para o mesmo fim o capitão de fragata, Figueirôa. Não nos consta que este distincto official chegasse a exercer taes funcções. É certo que o commissario portuguez, JoséAllemão, apresentou logo em 26 de outubro o seu primeiro relatorio ácerca do conflicto dos pescadores hespanhoes e portuguezes nas costas de Monte Gordo (Livro Branco, apresentado na sessão legislativa de 1879, pag. 54 e seguintes); e que a 11 de março de 1878 remetteu ao governo um outro, que é informação completa e judiciosa sobre o modo de regular a pesca entre as duas nações. Este documento pede ser consultado

Todavia, os conflictos succedidos em abril de 1878 entre portuguezes e hespanhoes do rio Minho, no areinho de Vimes; o desejo de que não fosse alterada a reciprocidade da pesca ali tão conveniente aos contendores; a ne cessidade de um regulamemto, quer para a costa do sul, quer para a do norte, e para os rios communs dos dois paizes; e o serem arbitradas as indem. nisações, cujo direito ficara reservado nas notas diplomaticas (nota de 17 de outubro de 1877 da legação de Hespanha em Lisboa; nota de 16 de outubro do mesmo anno da legação portugueza em Madrid-Livro Branco de 1879, pagina 158), tudo, além da boa harmonia dos dois governos, foi causa de que, em maio de 1878, fossem nomeados dois novos commissarios, sendo o de Hespanha D. Francisco Javier de Salles, official do ministerio da Marinha; e de Portugal, o conselheiro José Vicente Barbosa du Bocage. Tinham poderes, não só para regular a questão pendente das indemnisações aos pescadores hespanhoes e portuguezes, lesados pelo conflicto de 2 de outubro; e até para formular as bases de uma convenção de pesca, de modo que esta pudesse ser exercida com perfeita reciprocidade nos rios e costas das duas nações. Os commissarios apresentaram, a 14 de julho de 1878, um convenio provisorio, que restabelecia a reciprocidade no exercicio da pesca entre Portugal e Hespanha, o qual só devia vigorar por 3 annos (Livro Branco de 1879, pagina 258-280). A 6 de agosto de 1878 publicou-se o regulamento provisorio d'esse exercicio da reciprocidade da pesca; e n'elle se determinava que ella deveria vigorar emquanto se não concluisse uma convenção definitiva, approvada pelas camaras portuguezas e hespanholas. Começou em vigor a 15 de agosto.

Em 12 e 21 de outubro de 1879, porém, novos conflictos se levantaram em Villa Real de S. Antonio e nas costas de Tavira. Havendo cinco galeões hespanhoes sahido a pescar n'aquella costa a 10 metros de fundo, e com prejuizo dos interesses dos pescadores portuguezes, e contravenção á lettra e espirito do convenio, provocaram tal irritação de animos e taes desordens, que os dois governos nomearam logo delegados para o exame e relatoriodos factos, avaliação dos prejuizos e para sobre elles arbitrarem. Os commissarios foram:-de Portugal José Allemão de Mendonça Cisneiros e Faria, nomeado por decreto de 4 de novembro de 1879; o de Hespanha D. Patricio Aguirre de Tejada, coronel capitão de fragata da armada hespanhola. As instrucções conciliadoras que receberam os commissarios para examinar em que pontos os factos succedidos infringiam o convenio de 14 de julho de 1878, constam da portaria de 5 de novembro de 1879 e nota do Conde de Casa Valencia de 21 de outubro do mesmo anno. (Livro Branco de 1882, pagina 20, 22 e 23). Dez dias duraram as conferencias dos referidos commissarios; de II a 21 de novembro de 1879, como é constante das actas que acompanham o relatorio do delegado portuguez José Allemão (4 de dezembro). Ahi se fixaram as indemnisações e se discutiu e alterou o convenio de 1878, combinando os delegados dos dois governos algumas conclusões ad referendum. (Acta de 20 de novembro de 1879 no LivroBranco de 1882, pag. 67).

E porque concedida indemnisação a patrões de barcos hespanhoes, seria injusto que egualmente não o fosse a pescadores portuguezes, sendo que desde o começo e continuidade da pendencia sempre havia sido reservado ao goberno portuguez o direito de por ellas pugnar, depois de discutida largamente a questão pelos diplomatas,-foi nomeada uma outra commissão

em dezembro de 1880 que apreciasse os prejuizos causados a pescadores portuguezes nas aguas de Hespanha en 1879 e para modificar o convenio provisorio de 14 de julho. Da parte de Hespanha foi nomeado o coronel don Patricio Aguirre de Tejada; e da parte de Portugal o capitão de fragata Pedro Carlos de Aguiar Craveiro Lopes (portaria de 4 de dezembro de 1880). As instrucções que recebeu o commissario portuguez, analogas as que recebeu o de Hespanha, são claras: 1.0—averiguar a existencia, extensão e alcance dos factos de que se queixavam os pescadores portuguezes; 2.0-avaliar damnos emergentes e lucros cessantes em consequencia d'esses factos; 3.o-estudar conjunctamente as alterações, que sob o ponto de vista technico conviesse introduzir no convenio provisorio de 14 de julho de 1878, em ordem a conciliar e promover os interesses dos pescadores dos dois paizes. Os commissarios desempenharam-se do mandato estabelecendo as mutuas indemnisações; propondo que cessasse a reciprocidade da pesca, isto é, marcando uma linha de respeito, mas excluindo de tal disposição o rio Minho, que deveria continuar reciproco entre os dois povos. A reciprocidade, porém, estabelecida pelo convenio de 1878, continuou. Em junho de 1881 concordou-se que elle fosse prorogado por 6 mezes; em janeiro de 1882 (14) teve a prorogação de quatro mezes, ou pelo tempo indispensavel para a negociação do novo convenio; em maio de 1882 foi ella augmentada con mais quatro mezes, e finalmente o tratado de commercio de 12 de decembro de 1883 entre a Hespanha e Portugal declara no artigo 23.—«Cada uma das altas partes contratantes reserva para os seus subditos tão apenas o exercicio da pesca nas suas aguas territoriaes, e um convenio especial regulará o cumprimento d'esta disposição. » O convenio regulamentar de pesca de 2 de outubro de 1885, em harmonia com o dispos to no artigo 23 d'aquelle tratado, estabelece o principio do direito exclusivo de pesca para os seus nas aguas territoriaes de cada Estado. Acaba com a reciprocidade (Livro Branco de 1886, p. 65 e seguintes). Assim se julgou e intendeu pôr termo ás questões de pescarias, devidas, não nos cançaremos de o repetir, não ao antagonismo de homens ou de povos, mas a necessidade de harmonisar as coisas, pois as redes mais perfeitas da Hespanha faziam concorrencia temerosa ás artes portuguezas, que tendem a melhorar, mas cujos melhoramentos só o tempo póde trazer.

Esta questão de pescarias, que se protrahiu durante 6 annos, e que foi tratada e discutida por homens eminentes das duas nações, alguns dos quaes já são descidos ao tumulo, mostra mais uma vez a necessidade do tribunal de arbitragem para o julgamento dos conflictos internacionaes. Certamente, pódese affirmar, n'estes conflictos por causa do territorio, intervieram os arbitros; e mais não são esses officiaes superiores dos exercitos de terra e mar, que por vezes, na melhor harmonia, dirimiram as pendencias. Os governos homologavam tão sómente as suas decisões. E elles proprios, commissarios e governos, se declararam pela arbitragem constituida de um modo positivo e permanente. Para resolver as questões da pesca, assim o reclama o illustre contra-almirante Allemão Cisneiros no seu relatorio de 1879 (Livro Branco de 1882, pag. 41 e seguintes). Do mesmo modo e no mesmo anno, referindo-se a uma commissão mixta, assim o entemderam os dois governos de

Portugal e Hespanha (Livro Branco de 1882, pag. 72). O Sr. Conde de Casal Ribeiro, no seu officio de 2 de julho de 1888, escrevia ao governo portuguez: «As duvidas ou difficuldades que possam suscitar-se na execução do convenio de 14 de julho de 1878 e presentes additamentos (em projecto) sobre a applicação das regras da pesca ou de penas impostas por infracções em um paiz a subditos do outro, serão resolvidas por meio da arbitragem, sempre que taes casos occorram na provincia da Andaluzia em Hespanha, ou do Algarve em Portugal. Em taes casos serão arbitros os capitães dos. portos de Ayamonte e Villa Real. Quando os dois não concordem na decisão, haverá um arbitro de desempate por ambos escolhido. Quando não concordem na escolha, será arbitro aquelle dos vice-consules de Hespanha e Portugal, nas mesmas localidades, que a sorte designar» (Livro Branco de 1882, pag. 15).

E nem menos virá a succeder, pois, além das razões postas, militam tantas outras, que ja agora constituem a historia da boa amizade entre os dois povos; amizade que sobradas vezes se tem manifestado nas relações de commercio e tratados (1).

V

Excepção.

Questões ha, porém, que não podem ser submettidas á arbitragem; taes sãotodas em que a honra ou a independencia nacional entram directamente em jogo, e que nascem de um sentimento intimo, assim se diga pessoal, de que um juizo de arbitros não póde conhecer, sendo cada nação o melhor julgador da propria dignidade e dos direitos que lh'a garantem. A patria, a liberdade, as instituições, não são coisas com que se transija; a simples idéa de uma transacção a este respeito é já uma apostasia, um signal de abatimento, cuja iniciativa ninguem a quer. Esta a razão em muitos casos, da fraqueza e da vangloria da diplomacia. Quando entram em jogo a existencia moral, a honra. da cidade, a da personalidade collectiva que se chama patria, e que se reflec te em cada um de nós, fóra da qual nós voltamos ao estado natural, e cujo sacrificio nos é pedido,-tal sacrificio pelos cidadãos não se consente. Que o destino assim o mande, então vá, acceitaremos os decretos do destino. Mas pertence a quem beneficia com esses decretos, o executar, á custa de riscos e perigos, a vontade dos deuses. Entrega as tuas armas,» diz Xerxes a Leonidas.-< Vem tomal-as,» responde o espartano. E depois de 24 seculos, os applausos do genero humano cobrem a voz de Leonidas. Assim se expressa um pensador illustre (2). E com effeito, de razão fala, pois em ques-

(1) Sirvam de exemplo:-o convenio de 27 d'abril de 1866, ratificado a 12 de julho do me. mo anno, para facilitar as communicações entre os dois paizes pelas vias ferreas e fluviaes;-a convenção de 20 de maio de 1875 para o aperfeiçoamento do systema metrico, feita entre quasi todas as nações da Europa e da America, e na qual entram Portugal e Hespanha;-a convenção telegraphica de 22 de julho de 1875,-a convenção para a união postal universal de 1 de julho de 1878;-a convenção ratificada a 30 de maio de 1880 para melhorar as relações telegraphicas entre os dois paizes.

(2) Proudhon, La guerre et la paix, vol. I, pág. 255.

a

tão de dignidade propria ou da dignidade dos povos, calam-se todas as razões de conveniencia. Então o derramento de sangue, a perda de vidas, a lesão de interesses, comquanto enorme, tudo é de pouco, attenta a causa, que só é digna de consideração. Trata-se do direito na sua mais alta essencia dignidade; que, por isso, mais é que a vida, o amor, a riqueza, a liberdade. Não pende um litigio de interesses; pende não raro, uma questão de soberania; e só é capaz de se fazer respeitar, o que sabe morrer. Posta a questão n'estes termos, é dever concluir.

VI

A arbitragem entre Hespanha, Portugal e os Estados ibero-americanos. Forma de a tornar efficaz.

Senhores: Quando uma verdade apparece no sentimento do homem, e se affirma reiteradas vezes nos actos da propria vida, ou nos da vida dos povos, não pode, cedo ou tarde, deixar de vir a uma existencia real e effectiva. Este é o progresso natural das idéias, que, desde utupias corren lances differentes, até se incarnarem nas instituições. É o que virá de succeder á instituição, que ora discutimos. Apparecendo na consciencia humana, confirmada pela consciencia dos povos, necessaria aos variados e vitaes interesses das sociedades, ella entra agora no dominio positivo, e pede direito de cidade, para derimir as differentes questões. Discutir ao presente qual deva ser a organisação de um tribunal de juizes compromissarios, indispensavel para a mantença da paz na união das nações, não é o nosso proposito. Mais restricto o consideramos, visto que esta real academia o limitou e definio, perguntando-não de que modo tornar effectiva a arbitragem entre os povos civilisados; mas de que arte organisal-a e tornal-a efficiente entre a Hespanha e Portugal e as nações ibero-americanas. A questão é, portanto, sem deixar de ser momentosa, de menos proporções, mais limitada, ainda que não seja menos difficil nem de menor importancia.

I

Senhores: Para haver um julgamento é nescessario que exista uma lei, um tribunal e um processo:-uma lei, porque se não podem applicar aos casos occorrentes, senão as determinações positivas ou legaes;-um tribunal porque é elle quem procede ao exame das provas e applica a lei;-um processo porque é a lei adjectiva, quem dirige o julgador no descobrimento da verdade dos factos (e suas circunstancias), e egualmente as proprias partes no adduzir das provas. Assim, para um julgamento, são indispensaveis duas leis-a substantiva e a adjectiva, pois que os tribunaes, já fazem parte do processo, isto é da lei adjectiva. Postos estes principios, pergunto: é possivel organisar um tribunal para dirimir as questões dos povos ibero-americanos, não havendo um codigo-internacional, e bem assim, não existindo uma lei de processo que regule as partes no modo de provar o seu direito? Respondemos é possivel e deve ser organisado.

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